Quem lê pela primeira vez a versão original de Viagens de Gulliver,
tendo como pano de fundo uma vaga lembrança de adaptações infantis,
espanta-se ao constatar que tem nas mãos um dos textos mais amargos do
cânone ocidental. O livro de
Jonathan Swift, apesar de todo o seu ressentimento e misantropia, é uma
obra deliciosa, que permite vários níveis de leitura. É primeiro um
livro de viagens - ou melhor, uma sátira aos livros de viagens, tal como
Dom Quixote é, entre outras coisas, uma sátira aos romances de
cavalaria; para as crianças, é uma história de aventuras, cheia das
criaturas fantásticas e do humor escatológico de que tanto gostam; e é
um dos marcos iniciais da ficção científica.
Entretanto, o que mais fascina o leitor maduro nessa obra publicada pela
primeira vez em 1726 é o olhar implacável que seu autor volta sobre o
homem, suas instituições, seu apego irracional ao poder e ao ouro, e sua
insistência em prolongar a vida mesmo quando esta só proporciona
sofrimento.
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