A literatura camusiana não constrói altares de culto aos deuses nem aos
heróis; não elabora discursos retóricos em prol da verdade; não cria
Quimeras nem Esfinges que coloquem em risco a sobrevivência dos
transeuntes da existência; não fortifica as ideologias totalitárias nem
as ditas democráticas; não escreve tratados da existência como manuais
de sobrevivência na selva da urbanidade moderna; não faz escatologia da
existência humana para agradar ao Vaticano; não prega o Evangelho
Segundo São Paulo; não promete a salvação eterna em troca de dízimos
diários; não defende a construção do Novo Éden nos Jardins do Paraíso
Terrestre; não antropomorfiza Deus; não categoriza o “real” nos moldes
da razão cartesiana nem da kantiana; não promete salvação para o homem
como mérito da existência; não registra em cartório humano a felicidade
como herança; não espera que a inocência seja justificada perante os
crimes de lógica; não adere a nenhuma doutrina que mostre a causa da
peste; não se filia a nenhum partido que prometa acabar com a miséria no
mundo; não aceita as injustiças do mundo nem a justiça divina para
garantir a justiça. Todavia, possui a mesma confiança de Prometeu no
homem.
Ao elaborar as prerrogativas do absurdo vividas em sua época, conduz a
humanidade a refletir sobre a verdade que estava presa na ignorância.
Não é por acaso que ele elege dois heróis gregos para poderem expressar
sua indignação diante da redução do humano às divindades. Prometeu,
filiado ao partido da existência humana e Sísifo, condenado eterno do
cotidiano que, em meio à tarefa de repetição, supera seus algozes
divinos. Juntamente com esses heróis Camus traz de volta a esperança
perdida das “primaveras do mundo” em que o homem era humano. Quiçá, seja
o maior desafio de sua obra: ser a porta voz da humanidade sem voz,
daquela que geme no silêncio de suas falas o mais profundo e fiel
sentimento de revolta contra a usurpação da vida que só pode ser
recuperada graças à presença do Sol.
A realização desse enlace com o mundo, portanto, faz de Camus, muito
mais que um homem de seu tempo, um homem que transpõe as barreiras de
sua atualidade quando retorna ao próprio mundo em que está inserido e
revigora-o sob a égide da pura existência, isto é, sob o sol. Como
testemunha de uma época em que o homem está em profunda crise de
identidade, Camus brota dos escombros de uma sociedade esvaziada de
valores e impregnada de silogismos individualistas em que até a
inocência é evocada a se justificar.
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